terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Teresópolis e eu

Conheci Teresópolis em 1947, quando o acesso ainda era por Petrópolis, quase o dobro da distância atual, acompanhando meu avô em visita a uma tia reclusa no convento das Carmelitas Descalças. Em 1959, quando foi inaugurada a estrada direta, meu pai comprou um pequeno apartamento na Várzea, que todos os familiares e amigos frequentávamos com prazer, e anos depois adquiri um sítio na Fazenda Garrafão. Hoje estamos no Alto há bons anos, juntos com a filha, uma das netas e o bisneto primogênito, todos no Condomínio Comary e nós no igualmente aprazível bairro do Taumaturgo, uma ilha de tranquilidade mesmo no reconhecido sossego da cidade - às vezes, ao ir tomar sol na pracinha em frente, brinco com minha mulher que vou descer para ver a falta de movimento...
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O bairro é exclusivamente residencial, por enquanto, e consiste em apenas duas ruas paralelas, partindo da principal avenida da Cidade, unidas por três transversais, por onde circula de hora em hora um micro-ônibus da charmosa linha Cascata dos Amores, em cujos letreiros o nome do destino alterna com uma simpática mensagem de Bom Dia, Boa Tarde ou Boa Noite, conforme o horário. É o modelo mais eficiente de transporte público que conhecemos, mas não o utilizamos - mesmo almoçando fora todos os dias, preferimos usar o carro, já que todos os bons restaurantes locais têm estacionamento próprio ou próximo.
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O mundo gira e a Luzitana roda, divulgava o reclame da transportadora da minha infância, mas as engrenagens da especulação imobiliária ainda não moeram o bairro, talvez por estar em boa parte limitado pela intocável Mata Atlântica que o circunda, mas já há mansões em grandes terrenos ostentando preocupantes placas de "vende-se" nos muros. Mais do que um risco, é um fato cuja concretização, porém, não deve ser mais para nossos tempos...

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quarta-feira, 29 de novembro de 2017

A ciranda, o ovo e a galinha

A ciranda é uma dança de roda popular em Pernambuco, em que os participantes dão-se as mãos formando um grande circulo enquanto cantam e ponteiam, como elos de uma ondulante corrente humana. Quando estive em Recife, nos anos 1970, certa noite me deparei com a tradicional ciranda da Boa Viagem, que acontecia numa espaçosa praça conhecida como Terminal e não resisti ao chamamento do canto e da coreografia, que evocavam as brincadeiras de roda de minha infância numa rua sem saída da Tijuca. Após alguns minutos de observação para captar o ritmo e o refrão, lá estava eu integrado àquela gente, mais gente entre tanta gente, mais um elo na corrente.

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Até recentemente havia na Avenida N.S. de Copacabana dois tradicionais estabelecimentos da área de alimentação, de propostas similares, um em cada lado da via e ambos a poucos metros da esquina com a rua Santa Clara, o restaurante Cirandinha, no lado impar, cujo nome nenhuma relação explícita teria com a dança nordestina e o Gourmet 280, em frente, um misto de padaria, lanchonete e restaurante self-service de apelo indeterminado. Faziam parte e eram elos comerciais da cada vez menor ciranda de ícones da história de Copacabana.
O Cirandinha, bem mais antigo, ocupava uma loja estreita e comprida com pequena lanchonete aberta na entrada, onde as vitrines de um balcão em formato de ferradura exibiam, além dos cansados salgadinhos engordurados de boteco - coxinhas, croquetes, rissoles e empadas - as especialidades da casa que eram ovos cozidos envoltos por crosta à milanesa e imensos e caros camarões empanados, que podiam ser acompanhados por um chope geladíssimo e bem tirado. No espaço restante funcionava a portas fechadas um discreto e refrigerado restaurante à la carte, com o pouco movimento liderado por idosos.

Ovos cozidos e algumas vezes até coloridos, são um clássico petisco dos botecos tradicionais ora em extinção, são nutritivos, simples e baratos, embora complicados para descascar. Assim, os empanados do Cirandinha logo me conquistaram pela apresentação, e fui consumidor fiel por anos até que seus donos, emparedados pela estagnação empresarial do negócio, jogaram a toalha e o local se transformou em mais um apertado e anódino supermercado. Com os ovos, foi-se mais um elo da ciranda gastronômica popular de Copacabana.
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O Gourmet 280 ocupava uma área bem maior, dividida entre uma padaria interessante pela variedade e qualidade dos seus produtos, incluindo o naipe de salgadinhos, e um inexpressivo restaurante a quilo. Era mais novo e moderno, e bem movimentado. Oferecia na lanchonete a preço camarada um petisco que equivalia a um almoço, uma exuberante sobrecoxa de frango empanada que parecia ser a evolução natural do ovo do Cirandinha após atravessar a Avenida. Não sei se o ovo nasceu primeiro que a galinha, mas a sequência dos recentes acontecimentos e a forma como se desligaram da ciranda de tradições do bairro, empobrecendo seu folclore gastronômico, sugere essa opção. Passei um tempo fora e quando retornei à roda o restaurante havia dado lugar a uma farmácia, mais uma, como que confirmando minha intuição. O ovo evoluiu e gerou uma galinha, desta vez mais uma asséptica galinha dos ovos de ouro.

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quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Sobre idosos e a morte que cai bem

Fui encaminhado à antessala do centro cirúrgico, no final de um longo corredor ladeado por quartos de portas abertas, onde se viam idosos adormecidos mantendo no rosto cones de plástico de auxílio à respiração. Uma cena atual, perturbadora e triste que estranhamente me lembrou o peculiar carnaval de Veneza, marcado por patéticas máscaras ornadas com plumas e dotadas de enormes bicos, que pretendem expressar alegria mas são apenas melancólicas. E que evoca também equipamento usado mais remotamente por gladiadores para proteger o rosto, quando em luta pela vida nas arenas. São situações diferentes em cenários diversos, voltados para um objetivo comum de difícil consecução, dadas as circunstâncias - a sobrevivência.
Evoé, Momo! Morituri te salutant.
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A enfermeira, simpática, pediu:
- Senhor, pode retirar e me entregar a prótese.
- Que prótese?
- Os dentes, a dentadura, senhor.
- São naturais, querida.
- Sei ...
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A semana foi marcada pela promulgação da lei que criou uma nova classe de idosos, a dos velhos preferenciais - aqueles que têm mais de oitenta anos. Não é nada, não é nada, não é nada mesmo e acho que os idosos carentes iriam preferir outro tipo de atenção à prioridade nas filas. Seja como for, o assunto suscitou algumas reflexões ligadas ao quesito velhice e em especial ao tema indesejado, mas inescapável, de como enfrentar e amenizar as sequelas gerais da visita amarga da Velha Senhora. Com esse enfoque ganha espaço na sociedade esclarecida a figura do testamento vital - documento feito enquanto você está consciente das suas decisões e que especifica quais são os tratamentos e procedimentos aos quais deseja (ou não) ser submetido em uma situação terminal, tudo abordado com clareza e objetividade no texto sugerido.
Vamos viver e desfrutar a vida com alegria e encantamento, enquanto nos for concedida essa benção, mas sem descuidar dos procedimentos capazes de humanizar seus nem sempre amenos desdobramentos finais.

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Os brilhos da minha infância

Depois de alguns anos sem contato pessoal, devido às distâncias e desvios dos caminhos da vida, reencontrei na internet a família do meu tio mais novo, irmão caçula e temporão de minha mãe, então com 90 anos. Ao ver suas fotos dada a marcante semelhança física, lembrei do meu avô, seu pai, com quem tive escasso mas saudoso relacionamento durante um curto e conturbado período de minha infância.
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Vovô Rogério era siciliano e veio criança para o Brasil aos cuidados de parentes, como era comum na época. Foi registrado como brasileiro e logo que cresceu foi à luta, como também era costume na época. Radicou-se no estado do Espírito Santo, prosperou nos negócios, casou-se e teve nove filhos - cinco homens e quatro mulheres, entre elas minha mãe.
Minha memória recua aos nove anos, quando os percalços da Segunda Guerra Mundial desestabilizaram financeiramente várias famílias, inclusive a nossa. Com meu pai convocado e servindo ao Exército, fomos acolhidos na sua casa em Vila Isabel, compartilhada ainda com uma tia casada e sua família, além dos demais irmãos solteiros.
O avô comercializava pedras preciosas, e passava a maior parte do tempo viajando, sempre portando uma maleta preta com divisões internas forradas em veludo também preto, onde reluziam gemas de bom tamanho e alto valor, junto com pequenos e caprichados embrulhinhos, onde brilhavam dezenas de pedras menores. Uma atividade impensável nos dias de hoje.
Era elegante, sério, falava baixo e pouco - era discreto, em suma, apesar da sua origem peninsular.Tinha paixão pela sua atividade, e quando chegava de viagem fazia questão de nos mostrar as novidades, deixando todos fascinados com o brilho dos diamantes e o variado colorido das outras pedras. À noite, com filhos e netos reunidos à sua volta, abria prazerosamente a maleta em cima da mesa da sala, sob estudada e dramática iluminação, iniciando um ritual já conhecido mas sempre aguardado com ansiedade pela família, quando metódica e didaticamente nos exibia cada pedra comentando nome, pureza, tipo de lapidação e outras características que não compreendíamos bem, mas nos deixavam magnetizados mesmo assim.
Hoje, transcorridos tantos anos dessas tertúlias, a lembrança desses deliciosos momentos ratifica o entendimento que nos contatos afetivos o que importa não é a sua frequência ou duração, mas a qualidade e intensidade da relação. 






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quarta-feira, 12 de julho de 2017

O menino no engenho: a Fazenda São João

A sabedoria popular aconselha não revisitar locais onde fomos felizes. O tempo passa e as coisas mudam, mas a decepção é certa. Motivado por uma referência ao excelente programa de cadastramento e visualização das propriedades rurais do Vale do Paraíba, desenvolvido pelo Inepac-Rio, e estimulado pelas facilidades digitais resolvi correr o risco e fazer uma sentimental visita virtual à Fazenda São João, que no passado distante frequentei com alegria. Se foi decepcionante constatar o ocaso de um ciclo social e produtivo que tive o privilégio de ocasionalmente vivenciar, foi gratificante ter identificado em cada marco remanescente uma boa lembrança, um episódio inusitado, ou uma amizade efêmera que se perdeu no tempo. Foi doído, mas valeu! 


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A Fazenda São João, fundada no início do século XIX, com foco na produção de café em grande escala, tinha originalmente 1.210 cafeeiros espalhados em 236 alqueires geométricos, e seu sucesso comercial valeu ao proprietário ser agraciado com a comenda imperial da Ordem da Rosa, em 1858. As seguidas vendas e redivisões por herança, agravadas pelo fim do ciclo econômico do café, provocaram seu encolhimento e decadência. No final da década de 1940, quando a frequentei, estava reduzida a uma fração da área original, embora bem cuidada, e se sustentava com uma produção residual de café, leite e derivados, além de processar cana em cachaça, açúcar mascavo e rapadura. 


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Era complicado chegar lá. Embora geograficamente localizada em Paraíba do Sul, o acesso era feito por trem até Vieira Cortez, e de lá à propriedade em lombo de cavalo, num percurso de quase três horas. Um telegrama enviado com bastante antecedência para a posta restante combinava tudo e o caminhão que fazia a coleta diária do leite das fazendas se encarregava da entrega - ele era, aliás, o único meio de comunicação regular entre o vilarejo e as propriedades, e eventualmente transportava passageiros, correspondência e pequenos volumes. Os cavalos que conduziriam os visitantes ao seu destino eram levados cedo à estação ferroviária por um peão, e na volta se arrastavam a passo lento pela estrada poeirenta, ficando mais espertos quanto mais se aproximavam de casa mas após passar pela última porteira até precisavam ser contidos, tal a ânsia em alcançar as cocheiras. Assim como eles, nós visitantes também espantávamos o cansaço e ganhávamos novo alento ao ver surgir no horizonte a sede da fazenda, com sua longa e austera varanda linear pontilhada por janelas em guilhotina e enfeitada internamente com pinturas murais, ironicamente escoltada em contraponto pela exuberante capela dedicada a São João Nepomuceno, o mártir da discrição. Ainda bem cuidada, embora com pitadas de modernização, como as janelas basculantes de ferro que substituíram as originais de madeira na varanda, a construção contrasta com o cenário desolado do entorno. 

 

 

 

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A lavoura de café foi a responsável pelo desmatamento na fazenda, seu apogeu econômico e o panorama atual de incipiente desertificação. A plantação original foi feita em terras de mata derrubada, como era costume na época, e o solo se degradou quando os cafeeiros abandonados morreram sem que fosse feito o indispensável remanejo de culturas, . No grande pátio em frente à varanda era feita a secagem ao sol dos grãos do café, que já haviam passado pelos tanques de lavagem diretamente após a colheita. Chegavam em pequenas carroças basculantes, a carga derramada era pachorrentamente espalhada e revirada pelos colonos com o uso de grandes rodos de madeira, o lindo tapete mesclado pela variedade de cores dos grãos exalando ao calor do sol um inconfundível e inesquecível aroma, misto de terra molhada e café. Como esse processo passou a ser feito mecanicamente e em caldeiras, toda a beleza plástica do processo evaporou junto com a umidade e os abandonados tanques de lavagem, que também foram nossas piscinas improvisadas, se deixaram invadir pela mata.


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Não havia energia elétrica, mas a fazenda dispunha de uma usina simples, composta por uma roda d'água e um gerador de baixa capacidade. Um mesmo riacho supria as necessidades da casa, movia a roda e enchia os tanques de lavagem do café, que serviam de piscina na entressafra. A claudicante energia gerada só era suficiente para alimentar algumas poucas lâmpadas fracas e um rádio de válvulas, estilo capelinha, que junto com os receptores de galena montados por alguns moradores habilidosos era o centro das atenções às sextas feiras, quando ia ao ar um programa com o festejado ator, compositor e cantor Vicente Celestino. Acompanhado reverentemente por todos, dono de um vozeirão inconfundível e de um repertório um tanto brega e sinistro, alguns de seus sucessos - O Ébrio, Coração Materno, Porta Aberta etc. - ficaram marcados e até hoje ecoam na minha memória. 


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Um pequeno canavial sustentava a produção artesanal de cachaça, açúcar e rapadura, sendo a cana esmagada em moenda movida por tração bovina, num processo lento e pouco eficiente. O bagaço residual era picado num cortador manual e dado como ração ao gado, e a cachaça destilada era envelhecida em grandes toneis de madeira, instalados com o alambique em galpão à parte. Tudo era devagar naquela época e naquele lugar, com as coisas acontecendo em ritmo mais ou menos inercial, sem grandes surpresas ou sobressaltos mas com impacto suficiente para marcar minha juventude e justificar a visita nostálgica ao passado. Assim considerada, talvez não tenha sido uma má ideia... 


O menino no engenho 

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quinta-feira, 22 de junho de 2017

Vices: de Jango a Temer

Em março de 1964 eu tinha redondos trinta anos e estava em um bonde a caminho do trabalho quando ouvi um jornaleiro apregoando a manchete do dia - Jânio Quadros renunciara e a posse do seu vice João Goulart, em viagem no exterior, estava sendo questionada. Nos dias seguintes instalou-se o caos político, administrativo e hierárquico no país, com os movimentos esquerdistas tentando empalmar a condução dos destinos nacionais. Fiquei especialmente assustado com as imagens de João Goulart aceitando ser festejado por soldados e sargentos amotinados, nos salões do Automóvel Clube do Brasíl. A mobilização popular pela democracia e restauração da ordem que se seguiu deu-se pelas várias Marchas da Família e culminou na deposição do presidente pelos militares, iniciando uma ditadura que durou 21 anos, fez alguns estragos nos direitos humanos dos terroristas que a combateram, notabilizou-se por gerar o chamado Milagre Econômico e auto encerrou-se por esgotamento do modelo.
Desde a proclamação da República o Brasil tem uma história conturbada de vices que assumiram a presidência, sob os mais variados motivos, e até 1964 Floriano Peixoto, Nilo Peçanha, Delfim Moreira e Café Filho tinham sido elevados a primeiros mandatários durante seus mandatos. Já o regime militar começou, decorreu e acabou balizado por incidentes envolvendo os vice-presidentes do país, sendo João Goulart o primeiro a ascender de coadjuvante a protagonista eventual nessa nova fase, por força das artes e artimanhas do destino. A ele se seguiram em intensidade variável Pedro Aleixo, Aureliano Chaves e já na redemocratização José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer - este último vivendo contestação tão acirrada quanto Jango, embora por motivos diversos.
Já se disse muitas vezes que nada acontece por acaso e que a história se repete como farsa, mas se a anarquia do curto período João Goulart justificou a intervenção militar e tudo que aconteceu de economicamente positivo depois, o que nos reservaria de bom o desdobramento dessa imensa crise moral, administrativa, institucional e ética que marca a infeliz passagem do vice Michel Temer pelo Planalto?

domingo, 11 de junho de 2017

Brasília, anos '70: bomba, bomba!

 As violentas manifestações de protesto e os atos de vandalismo exacerbado estimulados por movimentos de esquerda, acontecidos recentemente em Brasilia, me lembraram as ações de contestação à ditadura que pipocaram pelo Brasil durante o governo do General Médici, contrapostas à evidente simpatia que o mesmo despertava em segmentos das classes média e popular. Enquanto a esquerda praticava atentados, com mortes de inocentes, o general responsável pela repressão e mortes de subversivos era aplaudido no Maracanã, onde acompanhava os jogos do Fluminense. O que se vê hoje é a esquerda ainda desvairada e radical, pra não dizer incendiária, sem o contraponto de políticos dispostos a arrostar as massas no Maracanã, desde que Dilma e Lula foram gentilmente convidados a tomar caju, durante a Copa do Mundo de 2010. 
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O vice-presidente de Médici era o almirante Augusto Rademaker, figura de prestígio nas Forças Armadas e que hoje dá nome a belonave de nossa Marinha de Guerra. Por falta de local mais apropriado, Rademaker ocupou com seu gabinete todo o vigésimo e último andar do então prédio sede do Banco do Brasil, um dos primeiros edificados na Capital e materialização do princípio universal do onde vai o dinheiro todos vão atrás. Era uma construção sem maiores luxos mas bem acabada, apesar de ter sido projetada e erigida "no ritmo de Brasília" - o que na época podia significar muitas coisas. Por coincidência, a sala do almirante ficava exatamente em cima da minha, localizada no 19° pavimento, e como ele eventualmente convidava funcionários do banco a compartilhar o elevador privativo, acabei por conhecê-lo pessoalmente e a trocar cumprimentos formais. Era um sujeito simpático, não há como negar.
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Certa manhã houve um alarme de ataque terrorista ao prédio, mais especificamente ao gabinete da vice-presidência da República. A ordem de evacuar o edifício imediatamente, sem usar elevadores foi precariamente disseminada por telefone e por agentes que percorriam os pavimentos, tudo inacreditavelmente improvisado, especialmente se considerado o clima de conflito imperante. As escadas, embora espaçosas, serviam de comunicação entre os saguões dos elevadores e entre eles e os corredores internos, eram abertas e ficaram apinhadas de gente que descia ansiosa, muitos justamente aterrorizados. Desabei pelos dezenove pavimentos em poucos minutos que me soaram como horas, e ao conseguir finalmente deixar o prédio com um grupo final de colegas aliviados constatamos estarrecidos que uma construção daquele porte, que inclusive acolhia parte de um dos poderes da República em época socialmente conturbada, não dispunha de escada contra incêndio e pânico! O alerta revelou-se falso, mas a insegurança que ensejou foi verdadeira.
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Tempos depois, ante as evidências de que o incidente poderia ter tido trágicos desdobramentos, foi instalada no prédio uma escada de incêndio metálica externa, nos moldes daquelas existentes em imóveis antigos de Nova York, mas considerando a altura do edifício, a perspectiva de sua utilização era simplesmente aterrorizante, e logo que possível o edifício foi desativado e deixou de acolher seções do banco. Ao ver as imagens dos ministérios queimando em Brasília, lembrei-me do incidente da bomba, e tive uma dúvida: será que tinham escadas apropriadas?... 


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domingo, 30 de abril de 2017

Memórias: Querida Mamãe

Minha mãe foi uma moça muito bonita, de traços finos, pele muito clara e porte franzino que abrigava um grande coração, valente e generoso. Enfrentou e venceu com galhardia e bom humor as provações por que passamos durante a Segunda Guerra Mundial, quando meu pai foi convocado pelo Exército, ficou seriamente doente e ela assumiu o comando da família na dor, como assentiu em seus votos matrimoniais. E ainda encontrava ânimo para ajudar necessitados. E na hora da sua despedida aceitou os fatos com serenidade, sem queixas ou amargor, e talvez por isso tenha merecido a benção de um final tranquilo e indolor. ---------------- Nossa infância e juventude transcorreram num mundo em que havia doenças e inexistiam vacinas. Sarampo, caxumba, catapora e outras afecções menos comuns eram consideradas potencialmente perigosas e seus surtos alarmavam as mães. Menos a nossa, que tinha lá suas razões para acreditar que era melhor ficarmos doentes enquanto crianças a correr um risco maior com mais idade, E assim, de uma forma ou de outra, e para horror de outras famílias, todos contraímos e vencemos essas doenças ao mesmo tempo, na base da emblemática canja de galinha - o que não deixava de ser gratificante naqueles tempos bicudos. ----------------- Na casa ao lado morava uma família alemã, um casal com duas crianças da nossa idade. Quando houve o torpedeamento de navios brasileiros e o Brasil declarou guerra à Alemanha, aconteceu uma insana e geral caça às bruxas e a residência vizinha foi cercada e apedrejada por manifestantes descontrolados. A família permaneceu trancada lá por alguns dias, até que fosse removida em segurança pelas autoridades, e enquanto isso certamente passava aflições e, especialmente, fome. Preocupada com as crianças, no terceiro dia de cerco mamãe juntou num grande farnel tudo o que havia de mantimentos disponíveis em casa, e desafiando as caras feias dos manifestantes remanescentes foi comigo oferecer a ajuda aos desesperados alemães, que avidamente a recolheram por uma fresta da porta. Um gesto corajoso e generoso cuja dimensão na hora não avaliei, mas que nunca esqueci. ---------------- Após a morte do nosso pai minha irmã do meio, também viúva, foi morar com ela para lhe fazer companhia, e o que parecia improvável felizmente aconteceu - deu tudo certo, na base de polos contrários se atraírem. Ainda bem. Ela se sentiu estimulada e venceu a natural tristeza, voltando a exibir satisfação em caprichar no seu sempre discreto mas bem resolvido figurino; tornou-se uma velhinha bonita, saudável e alegre, que gostava de passear por Copacabana. Certa feita saí com ela, e de mãos dadas na estreita calçada da tradicional Flora Santa Clara cruzamos com duas senhoras que a conheciam. Uma delas olhou bem para mim, e soltou o comentário maldoso - "Aí, hein, Dona Irô...", no que ela de pronto fulminou a fofoqueira com um firme - "O que é isso, Dona Fulana, é meu filho!". Divertido, olhei de soslaio e discretamente constatei seu sorriso duplamente orgulhoso. E nada mais foi comentado. ----------------- Quando éramos crianças, mamãe gostava de eventualmente dedilhar um violão e com sua voz pequena porém afinadinha, cantar para nós modinhas, cantigas de roda e canções folclóricas - e ficava muito feliz com nossa atenção. Crescemos, casamos, nos dispersamos e nunca mais apareceu uma oportunidade de a ouvirmos cantar. Alguns anos depois estávamos todos de certa forma reunidos de novo, morando à sua volta em Copacabana. Meu Pai morreu, e quando ela se recuperou do baque passou a cultivar um novo hábito, coerente com sua saudável curiosidade por tudo que se passava no mundo e com o prazer com que desfrutava da companhia dos filhos: lia o jornal diário atentamente e marcava artigos, notícias ou trechos de textos que despertaram a sua atenção, para reler em voz alta e comentar comigo nas visitas quase diárias que lhe fazia - e ficava muito feliz com minhas apreciações. Ao final desses encontros ela ficava na janela esperando até me ver sair do prédio, sorrindo e acenando, visivelmente contente. Eu caminhava até final da rua e antes de dobrar a esquina olhava de novo e lá continuava ela, sorrindo e acenando. ----------------- A doença intratável a atingiu logo após completar os oitenta anos, e evoluiu de forma rápida e felizmente indolor. Nunca saberemos se conhecia a extensão e o prognóstico, mas não se mostrava abatida ou revoltada, e estava otimista e alegre no sábado que antecedeu sua internação para um procedimento paliativo, quando toda a família se reuniu para um adeus inconsciente. Na manhã de segunda feira deixei-a no hospital com minha irmã, à tarde fomos informados que sofrera um ataque cardíaco e estava em coma. À noitinha visitei-a no CTI e parecia dormir serenamente. Entendi e me despedi. De madrugada morreu em paz. ----------------- Sempre que caminho agora por aquela rua curta e estreita, atulhada de carros, olho instintivamente para aquela janela vazia, e triste apresso o passo. Antes de dobrar a esquina, porém, não resisto e olho de novo, e lá está ela sorridente a acenar - a velhinha na janela.

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sexta-feira, 7 de abril de 2017

Um tiro na noite

Nos anos '60 só existiam telefones fixos, daqueles modelos pretos enormes, com discos. Eram raros, levava-se anos para conseguir uma linha e a Ilha do Governador, onde eu morava, juntamente com toda a Zona Oeste do Rio, era especialmente carente do serviço. Por outro lado, as favelas eram ainda incipientes - só cresceram e se multiplicaram nos governos Brizola - e não se tinha notícia de violência nem havia tráfico de drogas nos níveis atuais. Mas as sementes da Maré já estavam lançadas, e os barracos germinavam ao lado do acesso à Ilha via Avenida Brasil.
Certa noite voltava tarde do trabalho e ao passar em frente à favela um policial militar de revólver na mão pulou na frente do carro, sinalizando para parar. Era bem jovem, estava transtornado e chorava enquanto falava aos arrancos. A custo entendi que procurava ajuda para o companheiro de plantão no Posto Policial do local, que se ferira com um tiro na perna - da própria arma, explicou. Como não havia telefones para pedir socorro, queria que transportasse a vítima até o Hospital Paulino Werneck, na Ilha. Entrei com o carro pelo meio dos barracos até o Posto, onde ferido e colega se acomodaram no banco de trás, sendo que já haviam providenciado um garrote rudimentar na perna lesionada e sustado a hemorragia. ---------------------------- No trajeto em silêncio até o hospital fui pensando nos transtornos que o incidente me acarretaria, como depoimentos e audiências próprios do inquérito policial que certamente seria instaurado, mas logo me dei conta que os atarantados soldados não haviam feito perguntas nem anotações a meu respeito, ou do carro. Assim, logo que foram resgatados na porta da emergência do hospital e fiquei só, tratei de sair discretamente do local. Ao chegar em casa, aliviado e certo de estar livre das sequelas da ocorrência, acendi a luz interna do veículo e fui verificar se havia manchas de sangue na forração. Foi quando encontrei, esquecido em cima do banco, o revólver...
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segunda-feira, 3 de abril de 2017

Se essa rua fosse minha...

Em 1945 mudamos para uma via sem saída e sem trânsito na Tijuca, entre a rua Barão de Mesquita e a Avenida Maracanã. Seu terço central era ladeado por dois compridos e altos muros cegos opostos e antagônicos, de um lado o dos fundos dos galpões da Companhia Municipal de Limpeza Urbana, que abrigavam as cocheiras e os burros do então vigente serviço animal de coleta de lixo e do outro o do campus do Externato Marista São José, onde brilhavam sábios e mentes bem dotadas. Ali a garotada mais velha disputava animadas peladas até com turmas de outras ruas, fazia manobras performáticas com bicicletas e a criançada mais nova brincava de roda à noite, atirando o pau no gato e chamando o boi da cara preta, inocentes cantigas hoje contaminadas pelos preconceitos e a praga do politicamente correto. Éramos felizes e não sabíamos, com perdão para o chavão, e queríamos que essa rua fosse nossa para sempre mas a prefeitura fez desapropriações na ponta fechada e ela passou a ser mais um movimentado acesso ao estádio do Maracanã. Acabou-se o que era doce, e o tempo se encarregou de enfatizar as diferenças e a troca de cenários - os galpões da Comlurb evoluíram para um lindo complexo corporativo, com prédios modernos e jardins abertos ao público, enquanto o colégio regrediu e entrou em uma crise que durou anos. Um dos muros reciclou-se, seu par deteriorou-se, e a nossa antiga área de lazer foi invadida pelos carros, inviabilizando as peladas e as brincadeiras.
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Ao longo da vida vamos conhecendo pessoas que, por razões diversas, acabam balizando uma época e se tornam lembranças referenciais. Uma dessas figuras foi Oswaldo Diniz Magalhães, o pioneiro e nacionalmente festejado professor de educação física criador da Hora da Ginástica, programa de exercícios orientados pelo rádio que ficou no ar por 51 anos, mesmo após a chegada da TV e das academias. Ele morava no final da rua, era simples, simpático e tinha filhos participativos. Suas aulas seguiam roteiro de movimentos apresentados aos ouvintes em cartazes encontrados em bancas de jornais e no comércio, e o professor comandava as ações seguindo a sua numeração, com o ritmo marcado por um pianista. Como que confirmando os benefícios do seu exercícios, Oswaldo morreu com 93 anos, em 1998 e ganhou de seus alunos uma estátua instalada na Praça Saens Pena.
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No prédio em frente ao nosso residia uma família que se notabilizava por ser proprietária do controverso Parque Shanghai - um grande, variado e concorridíssimo parque de diversões então instalado na Quinta da Boa Vista. O casal de filhos seguia a cartilha das crianças classe média da época, assim como a nossa, ou seja, o rapaz estudava no Colégio Militar e a garota no Instituto de Educação. E era muito bonita. Apesar da nossa amizade, não me lembro de alguém ter sido agraciado com ingressos de cortesia para os brinquedos, o que talvez explique a longevidade do empreendimento, que sobreviveu aos seus criadores. E se esses não chegaram a ser uma referência pessoal para nós, o Parque certamente foi.
--------------- Nosso apartamento era de lado, nos fundos de um prédio pequeno de três andares, sem elevador. Entre ele e as instalações da Comlurb havia uma casa luxuosa, que pertencia a uma família de joalheiros. Incomodado com a construção vizinha, que entendia prejudicar a sua privacidade, o empresário construiu um muro que se elevava até a altura do parapeito das janelas do terceiro piso do prédio, o que prejudicou ventilação e iluminação dos apartamentos abaixo do nosso e amplificou os barulhos deles emanados, que soavam como que dentro de nossos cômodos. Certa feita instalou-se no térreo uma família, oriunda do Acre, que promovia animados saraus musicais a qualquer hora, o que seria um tormento não fosse o relativo bom gosto do repertório e a enorme simpatia do grupo, que deixava a porta aberta como um convite à participação. O chefe da família, que era um piloto militar, tocava bandolim, sua esposa cantava e fazia percussão com duas colheres de sopa, a filha mais velha era pianista e o garoto mais novo sacudia um chocalho; a estrela da companhia era Joãozinho, o filho do meio, da minha idade, que tocava acordeão e piano magistralmente. Com o tempo e o inegável talento, Joãozinho passou a frequentar com crescente sucesso programas de auditório, os circuitos de festas e merecidamente entrou nos fechados grupos de músicos renomados. Moraram ali por pouco tempo, e quando mudaram perdi o contato, mas anos depois descobri que Joãozinho crescera como artista e se tornara merecidamente uma estrela internacional. Joãozinho agora se chama JOÃO DONATO. -------------------------
Então, descobrimos os "taiobas", apelido dos bondes bagageiros que circulavam pelos bairros em horários preestabelecidos, fazendo o transporte misto de cargas e pessoas.
Havia uma linha cujos carros subiam até o Alto da Boa Vista, fazendo ponto final e retorno em frente ao portão de acesso ao Parque Nacional Floresta da Tijuca, na Praça Afonso Vizeu. Era fácil e barato embarcar com as bicicletas no taioba, curtir a linda e lenta subida até o parque, tomar um banho gelado na famosa cachoeira da Cascatinha, e na volta descer em alta velocidade a Avenida Edson Passos até a Muda, sem qualquer equipamento de proteção e sem dar uma só pedalada, a desmiolada motivação e coroação da aventura. Extasiados pela sensação de liberdade proporcionada pelo vento que nos fustigava o rosto e impulsionados pela adrenalina que eriçava o corpo, nunca consideramos os potenciais perigos da brincadeira zelosamente escondida dos adultos - e felizmente nenhum acidente jamais aconteceu - mas sempre houve a percepção que aqueles momentos insensatos marcariam as lembranças da nossa juventude.
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Minha bike era estilosa e chamativa: trazida diretamente dos Estados Unidos por um primo da Marinha e pintada de vermelho vivo, tinha pneus balão, freios contrapedal e um enorme guidão estilo chifre de touro Maverick, que além de assemelhá-la a uma moto era imbatível na ajuda à estabilidade. Era pesada, mas isso ajudava muito nas descidas e curvas dos caminhos em velocidade. Enfim, foi bom enquanto durou. Com a extinção dos bondes e a explosão do trânsito as aventuras de bicicleta se inviabilizaram. Vida que segue, as crianças cresceram e seus brinquedos se sofisticaram.








 

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