terça-feira, 29 de março de 2011

Nascer, viver, morrer...

Seu nascimento foi participado a parentes e amigos da família de forma bastante criativa, mediante um cartão de visitas com uma única palavra - Nasci - seguida do nome e endereço.   No decurso da sua já então razoavelmente longa vida, sempre alimentou divertidos devaneios sobre as contraditórias interpretações que esse inusitado recado na primeira pessoa, afirmativo, curto e objetivo poderia suscitar, se seria apenas uma inocente comunicação, como parecia ou uma espécie de advertência velada à humanidade perplexa, do tipo "nasci, vocês vão ter que me engolir"...

Há inúmeras  alternativas e interpretações para o que possa ser considerado uma vida bem vivida,  desde aquelas iluminadas pelo brilho do sucesso que se mede em dinheiro, vinho, mulheres e música às indigentes que se escoam opacas e sem perspectivas na trágica zona cinzenta onde prevalecem sangue, suor e lágrimas - e seus derivados. Entre essas situações limites caminha a maioria da humanidade, lutando para fugir da mediocridade, vencer preconceitos, superar desafios.

Fazendo um retrospecto de sua trajetória, reconheceu ter vivido múltiplas vidas, sobrepostas umas, conflitantes outras, complementares algumas, traumáticas umas poucas, mas  fechado o balanço final o saldo  lhe parecia amplamente favorável. Reconheceu também ter contado algumas vezes com a providencial ajuda do destino, que o apresentou às pessoas certas nos momentos incertos. Reconheceu, ainda, que deveria agradecer à humanidade em geral por relevar aquela pretensa presunção inicial descabida e concordar em substituí-la pela humildade com que agradecia a cordial acolhida. Ao final, concluiu, não chegou a ser engolido nem repelido - foi assimilado.

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Ao sentir que lhe resta pouca areia na ampulheta do tempo, quem viveu e amou a vida lúcida e intensamente começa a se deparar com o fantasma do esquecimento assombrando seu imaginário, pois se a vida é uma peça, como assegurava Shakespeare, pior do que sair de cena é sair do elenco sem deixar lembranças. É preciso se preparar para o encontro com Caronte e sua barca da morte, para a longa viagem do esquecimento, cuidando de deixar pelo menos algumas pegadas da sua passagem. Ele agora cuidaria disso...
 

"Agora é o outono, o cair dos frutos
e a  longa viagem para o esquecimento.
.....
Constroi a tua barca da morte, a tua!
vais precisar dela.
Espera-te a viagem do esquecimento."
(D.H. Lawrence, A Barca da Morte) 

 

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