sábado, 5 de fevereiro de 2011

Homem ao mar!


Embarcamos no NE Guanabara no cais da Praça Mauá, para um cruzeiro de poucos dias de ida e volta a Vitória (ES) e logo à nossa frente estava atracado o cruzador-escola francês Jeanne D'Arc (1931-l964) que, assim como nós, largaria na manhã do dia seguinte. Para marcar o encerramento da sua visita, o navio francês  ofereceu à noite um coquetel de despedidas,  ao qual compareci juntamente com alguns colegas designados para representar nosso veleiro.


O Jeanne D'Arc de 1953  

Logo cedo o Guanabara largou a vela, após o cruzador francês, que ganhou distância pela força das máquinas, cruzou a barra e sumiu das nossas vistas ao guinar para o sul atrás do Pão de Açúcar.  Quando entramos no mar aberto aproamos para as Ilhas Cagarras, num bordejo destinado a aproveitar o vento e abrir distância da terra, seguindo ocasionalmente na esteira do Jeanne D'Arc, agora novamente visível no horizonte. Navegávamos então num mar de pequenas ondas, com ventos moderados e perfeita visibilidade, e já estávamos prestes a deixar as ilhas por boreste quando o vigia da gávea deu o alarme: algo se debatia no mar, quase à nossa frente. 


NE Guanabara, em 1953

Alvoroço a bordo, o alvo foi identificado como sendo um cachorro.  Como teria ido parar tão longe, um mistério.  A hipótese de ter caído do navio francês ou de uma da muitas embarcações que visitavam o arquipélago das Cagarras era a mais provável. Nosso comandante, que tinha a reputação de ser apaixonado pela navegação a vela e entusiasta das manobras que faziam o navio comportar-se sob seu comando como se fosse uma pequena embarcação, vislumbrou no incidente uma rara oportunidade para treinar a tripulação na manobra de "homem ao mar" e autorizou que  dois voluntários saltassem no oceano, devidamente equipados, para resgatar o animal.

Uma embarcação, ainda mais de grande porte e de propulsão a vela, não tem como parar imediatamente para socorrer um náufrago.  Existem manobras iniciais diferentes para as diversas situações de velocidade inercial e vento, umas mais simples e rápidas, outras mais complexas e lentas, todas com o objetivo de prioritariamente retornar ao ponto o mais próximo possível do local do acidente. Foi nessa emergência que despontou a competência de nosso Comandante  e a destreza da sua afiada tripulação - depois de algumas manobras rápidas a proa estava de novo quase em cima dos náufragos, os homens foram resgatados sem maiores problemas, sob aplausos, e nossa rotina a bordo retomada. O animal era uma simpática e agradecida cadelinha fox terrier que foi engajada à tripulação e, em nome de Netuno, batizada Jeanne.



Eu e a Jeanne

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Esse incidente foi amplamente noticiado na época pelo jornal Última Hora, que lhe deu a capa do Segundo Caderno com direito a fotos e entrevistas. 






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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O NE Guanabara


O NE Guanabara, veleiro de três mastros foi construído em estaleiros de Hamburgo e lançado ao mar em 30 de Outubro de 1937, para desempenhar funções como navio escola da Marinha alemã. Ao final da Segunda Guerra Mundial, foi capturado pelas forças aliadas dos Estados Unidos da América, sendo vendido ao Brasil em 1948 por 5.000 dólares. Foi incorporado à Marinha do Brasil em 27 de Outubro do mesmo ano, para ser  utilizado como navio escola entre os anos de 1948 a 1961, quando foi vendido para a Marinha Portuguesa, que o rebatizou como NRP Sagres. Totalmente reformado e modernizado, continua em plena atividade divulgando a Cruz de Malta pelos oceanos do mundo.

NE Guanabara em 1953

Era uma embarcação espartana, tendo seu desenho e construção se pautado pela fidelidade aos primórdios da navegação a vela. Seu motor tinha força limitada e era coadjuvado apenas por geradores de eletricidade. Tudo que implicasse esforço a bordo - cabrestantes das âncoras, máquinas dos lemes, manobra dos mastros e velas - era movido pela força física e sincronizada da tripulação, como nos velhos tempos das galeras cabralinas.  Os marinheiros, nós inclusive, escalavam as enxárcias e se equilibravam sobre cordas nas manobras nas vergas para caçar as velas, sem qualquer equipamento de segurança.  Considerando que o mastro principal tinha quarenta e cinco metros de altura do convés ao topo, o equivalente a um prédio de quinze andares, não eram fainas agradáveis...


Trabalhando nas vergas


As atividades a bordo eram divididas em quartos de serviço, quatro horas cada turno em funções alternadas, e uma delas era a de vigia no cesto da gávea, ou seja, ficar todo esse tempo balançando a uns 30 metros de altura numa espécie de pequena varanda no terço do mastro, vigiando o mar numa era pré-radar. À noite, então, quando o horizonte se confunde com o céu, além de sinistra era totalmente inútil, exceto quando cruzávamos com alguma rara embarcação bem sinalizada. Mas havia quem vislumbrasse ali um bom local para cochilar.

Jofre, Laumar, Luis e Moniz

Outro quarto muito pouco popular era o de navegação, ocupado com medições (o navio ainda usava odômetro de barquinha, uma raridade!), plotagens com o sextante,  consultas a tabelas e tábuas de navegação,   e a transposição desses dados para a carta náutica usando réguas paralelas para definir, com larga margem de incerteza, a posição do navio no mar. Tudo aquilo que hoje o GPS informa instantaneamente era lenta e sucessivamente levantado, somado e calculado a intervalos regulares na atividade muito propriamente denominada navegação estimada.

Sorte minha que gostava desse trabalho continuado  no camarim de navegação, onde o tempo passava rápido,  e detestava a monotonia aérea do cesto da gávea, pois sempre conseguia fazer uma troca de funções com os preguiçosos da hora!  


O Guanabara navegando  a todo pano 


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domingo, 30 de janeiro de 2011

De velas e veleiros


Sempre fui fascinado por veleiros de qualquer porte.  A perspectiva de domar uma das mais imprevisíveis forças da natureza, de utilizar sua energia descontrolada para alcançar um objetivo predeterminado, de navegar em silêncio apenas quebrado pelo ruido das ondas lambendo o casco da embarcação, de sentir o afago da brisa no rosto é indescritível.  Somente quem experimentou entende o alcance dessa experiência.

Essas divagações afloraram ao conhecer um interessante video exibido pela TAM em seus vôos em que é apresentada ao público civil uma das mais singulares embarcações da Marinha Brasileira, o Navio Veleiro "Cisne Branco". Digno sucessor de outros veleiros famosos do século passado,  os navios escola "Almirante Saldanha" e "Guanabara", a nova embarcação tem atribuições de representação do país no exterior,  retomando com elegância e atualização tecnológica a tradição de quase todas as marinhas do mundo de reverenciar seu passado com os recursos do presente.


Navio Veleiro Cisne Branco

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Nunca embarquei no Saldanha, um dos mais bonitos tall chips de sua época, já que a missão desse veleiro de quatro mastros era realizar viagens de circumnavegação com os guardas-marinha recém formados, desde sua incorporação em 1934  - ano do meu nascimento - até dar baixa dessa atividade em 1954, meu último período na Escola Naval. Pode-se dizer que convivi com esse navio nos primeiros vinte anos de minha vida, embora à distância, e como seu fiel admirador senti como se me tivessem amputado os membros quando foi desarvorado, perdendo seus imponentes mastros para ser transformado em navio hidrográfico.



NE Almirante Saldanha chega ao Rio, 1936


Embarquei no Guanabara em meu último ano como aspirante na Escola Naval, em pequena viagem de instrução a Vitória (ES),  quando  já estava amortecido meu estusiasmo com a carreira militar e a romântica paixão por veleiros prestes a ser confrontada com a dura realidade das fainas a bordo. Foi um cruzeiro de surpresas e descobertas,  em que superei fisica e mentalmente tanto o desafio das entediantes rotinas do serviço como o das  perigosas manobras no mar, para ao final consolidar a convicção de que aquela, definitivamente, não era a minha vocação profissional. 



NRP Sagres, ex-NE Guanabara