sábado, 11 de junho de 2011

Kim


"Eu nasci pequenininho, como todo mundo nasceu...
Não, essa é a canção. Eu nasci muito pequenininho, mais pequenininho do que todo mundo nasceu, e tão feio e fraco que escutei as pessoas falarem que não vingaria, embora não entendesse bem do quê ou de quem deveria me vingar.  Minhas cinco irmãs eram lindas, gordas e fortes e me jogavam de um lado para outro, daí eu não conseguia mamar e estava ficando mais fraco ainda. Nós nascemos em uma pousada em Angra dos Reis, que pertencia a um casal também com uma família grande, o Faroleiro e a Patroa. Eles chamaram um médico de cachorros que me examinou muito e comentou com a Patroa alguma coisa referente ao meu coração, amor e carinho. Não entendi bem o que quiz dizer com isso, só sei que ela respondeu que cuidaria de mim como se fosse um filho, conseguiu uma maneira de ordenhar minha mãe como se fosse uma vaca, depois colocava o leite numa mamadeira de brinquedo e me dava de mamar como se fosse uma boneca. Acho até que misturava alguns remédios  no leite, e com isso fui ficando mais forte e esperto e logo pude disputar as tetas da mãe com minhas irmãs gorduchas. Mas sempre fui pequenininho, como todo mundo ao nascer.  



Minhas irmãzinhas foram se mudando e com o tempo só restou a Key, a mais gordinha e medrosa das cinco. Brincávamos muito e quando a casa estava cheia o Faroleiro subia para descansar no segundo andar, onde ficava o apartamento do casal, utilizando uma escada em caracol que ficava num canto do salão. Estruturada em ferro e com degraus forrados de madeira grossa, que pareciam flutuar no espaço, era imponente e linda! Sempre quiz conhecer o que havia lá em cima, mas tinha muito medo da Caracol. Um dia sem haver ninguém por perto me aventurei a tentar subir, mas ainda era muito novinho, minhas patinhas curtas não davam altura e fui obrigado a pular de um degrau para outro, na terceira tentativa consegui mas como o impulso foi grande, as patas deslizaram na madeira polida e despenquei pelo outro lado! Doeu, no corpo e na alma. Fiquei apavorado e desde aquele dia sempre que olhava respeitosamente para ela, a Caracol, tinha a impressão de que estava considerando com severidade a minha pretensão e havia ajudado no tombo. Nunca mais tentei. Não tentei, mas o Faroleiro algumas vezes me levava no colo até lá, quando fazia frio. Ele recostava numa cadeira espreguiçadeira para ouvir música e se cobria com uma manta xadrez, levantava uma das pontas e eu me aninhava gostosamente aos seus pés. 



Foram  sete poucos anos de convivência feliz quando comecei a me sentir muito cansado. Às vezes tentava correr e brincar mas perdia o fôlego e sufocava. Coisas do coração, diziam os médicos - até mesmo um médico de gente que a Patroa conseguiu que me examinasse. Coração! seria amor demais? Naquela manhã me sentia muito cansado e fiquei deitado o tempo todo, mas a certa altura senti uma coisa diferente, uma angústia, uma forte necessidade de estar junto ao meu amigo. Lentamente andei pela casa e conclui que o Faroleiro estava descansando no segundo andar, mas precisava vê-lo, precisava que me visse, precisava estar com ele sem muita perda de tempo. A Caracol estava lá no seu canto, imponente como sempre e como sempre um desafio à minha capacidade. Consegui reunir forças para enfrentá-la, subir pela primeira vez um a um todos os seus degraus,  e chegar ao patamar, ofegante mas vitorioso, pois precisava estar lá, precisava vê-lo! Após alguns segundos para recuperar a respiração, subi na cama e deitei do outro lado, olhos fixos  na espreguiçadeira onde o Faroleiro cochilava, mas pouco pude permanecer ali pois um estertor denunciou minha presença e despertou o grande amigo.

Foi uma correria e tanto, a Patroa chorava, o Faroleiro parecia muito aflito mas eu estava feliz, havia superado as minhas limitações, estava junto do meu amigo e, sobretudo, havia vencido a Caracol! Voltei a cabeça no colo da Patroa e olhei vitorioso para ela, a Caracol, que lá continuava  bela e imponente, mas sua figura foi-se tornando difusa, parecia agora envolta em névoa cada vez mais forte, foi sumindo, foi sumindo, foi sumindo..."

*

Kim sobreviveu sete anos contra todos os prognósticos e expectativas dos veterinários e morreu nos braços da Patroa que lhe garantiu a vida. Seu corpo foi enterrado na floresta nos fundos da pousada e se os cães têm alma, a sua deve estar agora se divertindo correndo atrás dos gambás que por ali passeiam.






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3 comentários:

Julia Manacorda disse...

Júlia Manacorda Esse tive que tomar coragem para ler, sabia que ia chorar...saudades do Kim e da Key. Cachorros, impossível não amá-los. ^^

Ayêska Paulafreitas disse...

Pois é, Júlia. Acabo de ler e também estou chorando.

Edô Pessoa disse...

Também apaixonada por estes anjos de patinhas e por todos os animais, criaturas do nosso mesmo Criador,não dá para não emocionar, não dá para não chorar. Já me despedi de tantos... Tenho alguns destes anjos em casa e nas ruas onde sou reconhecida e amada por eles, assim como dou meu amor e agradeço a oportunidade de poder compreendê-los, seja num afago ou numa troca de olhar. Uns me olham estranho, outros escuto dizer: "Coitada, acho que ela não bate bem, conversa com cachorros na rua!" Eu rio e sinto-me feliz por ser uma louca que entende a alma destes seres maravilhosos que "dizem" ser irracionais! Abraços e parabéns por esse espaço LINDO! Por ter compartilhado tb uma coisa em comum que faço até hoje: Passar embaixo do prédio onde mamãe morou e tentar inultilmente procurar por ela na janela...